4/01/23
Nos últimos anos, um estrato numeroso da população do país tem sofrido ameaças à sobrevivência de várias naturezas e ordens de grandeza. Essa violência se manifesta por meio da ocupação urbana desordenada, da degradação e poluição do meio ambiente, das mudanças climáticas, do uso excessivo de agrotóxicos, entre outros fatores. Para agravar o quadro, a falta de recenseamento impede que a sociedade tenha noção do tamanho das perdas nesse período. Embora a descrição acima também se aplique aos mais de 215 milhões de cidadãos brasileiros, estamos falando de uma população ainda mais numerosa e muitas vezes invisível: a de insetos no Brasil.
Um estudo nacional inédito revelou que as populações de insetos terrestres estão em declínio no país – seguindo uma tendência mundial, mas que ainda não tinha sido bem documentada por aqui. O artigo com o trabalho, divulgado em agosto na revista Biology Letters, é baseado em uma revisão de 45 estudos publicados e em questionários enviados a investigadores da área espalhados pelo país. Os dados foram organizados por pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), Federal de São Carlos (UFSCar) e Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Dos 156 investigadores contatados, 96 responderam ao questionário e 56 deles ofereceram dados e publicações para o grupo liderado pelo biólogo Thomas Lewinsohn, do Instituto de Biologia da Unicamp. Como resultado, o apanhado de informações mapeou 75 tendências – a partir de 45 estudos – em um período médio de 22 anos de observação para insetos terrestres, com destaque para borboletas, abelhas e escaravelhos, e ao longo de 11 anos, em média, para insetos aquáticos.
Em relação aos insetos terrestres, foram encontradas 19 tendências de declínio populacional ante 5 de crescimento e 13 de estabilidade. Sobre a diversidade de espécies, a quantidade de casos de declínio também é maior: 14 ante 5 de crescimento e 19 de estabilidade.
Considerando apenas os insetos aquáticos – aqueles que vivem pelo menos um estágio do ciclo de vida em água parada ou corrente –, o estudo identificou equilíbrio entre as tendências demográficas, com 6 casos de estabilidade, 2 para declínio e 2 para aumento. No que toca à diversidade de insetos aquáticos, mais estabilidade: 11 casos sem tendência, 4 apontando crescimento e 3 indicando declínio.
“As diferenças nos resultados entre os hábitats podem ter a ver com o menor período de observação dos trabalhos realizados em ambientes aquáticos considerados e, também, por uma questão metodológica”, explica Lewinsohn. “Os dados para insetos aquáticos provêm na maioria de estudos realizados por órgãos de controle ambiental; portanto, há um viés para locais bastante perturbados desde antes do início das observações, especialmente por poluição doméstica e industrial. O conjunto de dados para insetos terrestres tem proveniência mais variada, boa parte em áreas preservadas.”
Causas multifatoriais
O declínio populacional observado entre insetos terrestres tem causas multifatoriais, que vão de mudanças no uso da terra – com a retirada de vegetação nativa para fins agropecuários – ao uso excessivo de agrotóxicos, passando pelo aumento da poluição, mudanças climáticas e até introdução de espécies exóticas que rivalizam com as nativas.
A bióloga Kayna Agostini, do Departamento de Ciência da Natureza, Matemática e Educação da UFSCar e coautora do estudo, destaca a relevância desse tipo de pesquisa, apesar dos muitos questionamentos que ouve a respeito dele. “Algumas pessoas comentam: ‘Por que é tão importante sabermos se a população de insetos está diminuindo? Temos que dar graças a Deus’. O que elas não lembram é que a maioria dos insetos não é transmissora de doenças, mas é, cada um à sua maneira, responsável por importantes serviços ecossistêmicos.”
Os insetos atuam na polinização de várias culturas agrícolas, como melancia, abóbora, café, laranja e soja, e têm papel fundamental na reciclagem e na decomposição de animais. Também participam do transporte de materiais e da aeração do solo, desempenhando um serviço de aragem da terra, exercem controle populacional de espécies consideradas inimigas e são essenciais para a dieta de peixes, aves e outros animais terrestres.
O estudo brasileiro não se limitou à evolução demográfica de insetos considerados pragas urbanas, como baratas, cupins e mosquitos, ou que provocam prejuízo às lavouras, como gafanhotos, mas teve um foco mais abrangente, englobando todas as espécies com estudos disponíveis. Lewinsohn afirma que extinções sempre existiram e sempre vão existir. “Mas elas estão ocorrendo em escala e em aceleração inéditas, o que é catastrófico”, alerta.
As alterações em populações de insetos, explica o pesquisador, acontecem mais rapidamente do que na dos mamíferos, por exemplo, em que mudanças observáveis ocorrem em ciclos de 10 ou 20 anos. “Nesse mesmo tempo, podemos ter 30, 40 gerações de insetos indicando, por meio de mudanças populacionais, fenômenos ambientais e processos ecossistêmicos que não capturaríamos ou demoraríamos a capturar de outra forma”, afirma. É como se a vida dos insetos fosse um termômetro extremamente sensível para aferir a saúde do planeta.
Bastidores do estudo
Lewinsohn e três ex-alunos que assinam o paper – além de Agostini, participam André Victor Lucci Freitas, da Unicamp, e Adriano Melo, da UFRGS – começaram a planejar o estudo em meados de 2021. O trabalho se estendeu para outras dezenas de colegas, demonstrando que conexões, interações e diversidade não são características positivas apenas no âmbito dos serviços ecossistêmicos, mas também no da produção de ciência.
Diante da escassez de dados em publicações indexadas, o grupo decidiu ampliar o escopo de buscas incluindo anais de congressos, relatórios técnicos, teses e dissertações. Isso só foi possível com cada um deles acionando suas redes de colegas e enviando formulários para agilizar o rastreamento e a coleta desses materiais.
“O Brasil tem muitos biólogos, muita gente fazendo taxonomia de plantas, de animais, de microrganismos. O que falta é organizar o conhecimento existente para produzir informações sistemáticas. O que fizemos, inicialmente, foi acionar nossas redes. A coleta foi das mais positivas, com uma quantidade de respostas ao questionário mais alta do que esperávamos”, aponta Lewinsohn.
A repercussão do estudo rompeu a bolha acadêmica e foi positiva entre os pares acadêmicos. Publicações estrangeiras, como o jornal britânico The Guardian, já procuraram os pesquisadores para entrevistas, e a agência de notícias sobre conservação e ciência ambiental Mongabay deu ampla cobertura ao levantamento.
O biólogo e conservacionista mexicano Rodolfo Dirzo, pesquisador da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, destaca “o esforço hercúleo para compilar a melhor informação possível sobre as tendências populacionais entre insetos no Brasil”. Ele ressalta também a consonância dos dados com o que já foi medido no hemisfério Norte: “Um considerável declínio na abundância de insetos acompanhado por um menor, porém significativo, declínio na diversidade de espécies”.
O biólogo brasileiro Bráulio Ferreira de Souza Dias, da Universidade de Brasília (UnB), afirma que nenhuma outra região tropical extensa no mundo tem o nível de monitoramento ambiental do Brasil, especialmente com imagens de satélite. “Faltava uma consolidação dos dados de monitoramento de espécies. Esse artigo oferece o primeiro retrato sobre a situação das populações de um grande número de insetos especialmente nos biomas Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia”, observa.
Segundo o pesquisador, que não integrou a equipe responsável pela pesquisa, o Brasil está perdendo espécies e os resultados divulgados agora comprovam os impactos de fenômenos locais e regionais, como desmatamento e poluição. “Mas ainda não permitem aferir se as populações de insetos já estão sendo impactadas por fenômenos mais amplos, como o aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas”, diz.
Estudioso dos impactos das atividades humanas sobre a biodiversidade de florestas tropicais, o ecólogo britânico Jos Barlow, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, também destaca a relevância do estudo brasileiro. “Compreender tendências de longo prazo em biodiversidade é importante, mas, ao mesmo tempo, complicado, especialmente em um país como o Brasil, com desafios consideráveis para a identificar sua diversa fauna, incluindo a dificuldade para acessar algumas regiões”, disse a Pesquisa FAPESP Barlow. O pesquisador não fez parte do estudo brasileiro.
Fonte: Pesquisa Fapesp