26/12/22
Há 10 anos, um grupo de biólogos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ficou intrigado com a variação no número de morcegos-das-costas-peladas (Pteronotus gymnonotus) em uma caverna do Parque Nacional do Catimbau, a cerca de 290 quilômetros (km) de Recife. Se em um dia 120 mil animais estavam ali, em outro eram pouco mais de 200. Com a ajuda de um sensor térmico e um software que registram o entra e sai dos bichos, eles monitoraram outras cavernas da região Nordeste do país e perceberam que o fenômeno se repetia. “Sabíamos que não era mortandade. Eles estavam indo para algum lugar”, observa Enrico Bernard, coordenador do grupo.
Com base na análise do material genético de morcegos de nove dessas cavernas, os pesquisadores encontraram pistas para a charada: os dados sugerem que os animais formam uma população grande e conectada, com proximidade genética entre colônias que vivem em cavernas distantes até 700 km entre os estados de Sergipe e Ceará. “Os dados sugerem que esses animais podem estar se deslocando por longas distâncias”, explica Bernard. Anteriormente, a distância máxima registrada entre populações conectadas era de 150 km. As análises indicaram dois aglomerados genéticos conectados. “Isso indica que, apesar de existirem grupos distintos, há encontros reprodutivos entre colônias”, diz o biólogo.
“Esses morcegos estão usando uma rede de cavernas e isso implica não olhá-las mais de forma isolada”, observa a bióloga Fernanda Ito, primeira autora de um artigo que apresenta esses dados, publicado em outubro na revista Frontiers in Ecology and Evolution. Ela conduziu as análises genéticas durante o doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Animal da UFPE, concluído recentemente sob orientação de Bernard, coautor do artigo escrito também em parceria com dois pesquisadores da Universidade de Helsinque, na Finlândia. Foi na universidade europeia, durante uma bolsa sanduíche, que Ito fez o sequenciamento genético de amostras de 93 fêmeas e 84 machos dessa espécie, que têm pelagem marrom-avermelhada e cujo comprimento pode chegar a 7 centímetros (cm). Suas asas se juntam na linha dorsal, o que causa a impressão de que eles não têm pelos nas costas.
Ainda se sabe pouco sobre o deslocamento de morcegos no Brasil, já que não há para esses animais um programa específico de monitoramento como o Sistema Nacional de Anilhamento de Aves Silvestres (SNA), por meio do qual é possível entender as rotas e as áreas por onde passam as aves. Apesar disso, dados de pesquisas internacionais indicaram que outros morcegos, como o magueyero-menor (Leptonycteris yerbabuenae) e o morceguinho-das-casas (Tadarida brasiliensis), estariam se deslocando entre cavernas dos Estados Unidos e do México, com a primeira espécie percorrendo cerca de 1,6 mil km e a segunda 2,5 mil km. Na Europa e na África também há registros de morcegos que se deslocam por mais de 2 mil km.
E por que os morcegos brasileiros voariam tão longe? “Ainda precisamos descobrir a razão”, diz Bernard. Mas Ito e ele têm suas hipóteses: os costas-peladas talvez usem a rede de cavernas na busca por parceiros reprodutivos. Os pesquisadores desconfiam de uma segregação temporal entre os sexos nessa espécie, já que ora encontram mais machos nas chamadas cavernas-satélite, ora machos e fêmeas estão juntos – nesses momentos, os locais seriam usados para a cópula. Segundo o pesquisador, as fêmeas passam mais tempo nas cavernas-berçário, onde há câmaras quentes em que podem dar à luz. Nelas, o grupo já encontrou alguns machos, mas com mais frequência quem está lá são fêmeas com filhotes que nascem nessas câmaras e ficam ali por até quatro meses. “As cavernas-berçário costumam estar cheias durante todo o ano, de forma regular; as satélites apresentam mais flutuação”, descreve Bernard. “Precisamos investigar mais essas variações para entender o comportamento reprodutivo.”
Eles também podem estar em busca de nuvens de insetos, alimento principal da espécie. E esses morcegos comem bastante: em uma noite, chegam a devorar 20% de seu peso corporal – é como se uma pessoa de 70 quilogramas (kg) comesse um prato de 14 kg em um restaurante self-service. Segundo Bernard, entre os próximos passos do estudo está previsto entender quando os insetos são mais abundantes nas regiões das cavernas, para inferir se seria suficiente para estimular o deslocamento.
Outras questões precisam de respostas: a análise molecular mostra que houve o fluxo genético, mas os pesquisadores ainda não determinaram há quanto tempo isso ocorreu. “O material que extraímos permite obter esses dados, mas ainda estamos fazendo as análises”, explica Ito.
Conservação em rede
Se as cavernas estão conectadas pelo fluxo dos animais e se elas têm um papel essencial em sua reprodução, isso implica que toda a rede precisa ser protegida, sugere Bernard. Por isso, segundo ele, o licenciamento ambiental para exploração de áreas com cavidades subterrâneas, definida na Resolução n° 347/2004 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), precisaria ser discutido. Hoje é possível limitar, provisoriamente, a chamada área de influência da caverna a um raio de 250 metros (m) de seu entorno. “Essa metragem pode ser insignificante, já que a área de influência das cavernas para os morcegos pode ser muito maior do que se imaginava”, observa o biólogo.
“Existe uma pressão muito grande para diminuir essa metragem para um raio de 100 m, 150 m”, observa ele, um dos 90 pesquisadores de diversos países que assinaram uma carta na revista científica Science alertando para o risco de destruição que as cavernas brasileiras estão correndo depois da publicação do Decreto n° 10.935, de 12 de janeiro de 2022, que autoriza a construção de empreendimentos de utilidade pública em áreas de cavernas classificadas como de máxima relevância. No mesmo mês, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski suspendeu parte do decreto, por meio de medida cautelar, mas a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) publicou uma nota em que recomenda sua suspensão total.
Para o biólogo Paulo Bobrowiec, em estágio de pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que não participou da pesquisa, o estudo levanta ainda outras questões. “Por onde esses morcegos estão se deslocando? São áreas que têm sido impactadas pela atividade humana?”, questiona. “Além das cavernas, é preciso conhecer e preservar essa rota que eles fazem. Se há mudança na vegetação, por exemplo, isso pode impactar a oferta de insetos. Que impacto isso pode ter nesse fluxo?”, completa.
Já se sabe que na região amazônica, por exemplo, os morcegos evitam áreas anteriormente desmatadas e que já tenham sido recuperadas, porque nelas encontram menos alimentos e enfrentam mais predadores do que nas matas originais.
Artigo científico
ITO, F. et al. High genetic connectivity among large populations of Pteronotus gymnonotus in bat caves in Brazil and its implications for conservation. Frontiers in Ecology and Evolution. v. 10, 934633e. 5 out. 2022.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.