12/01/23
Sou um rato de laboratório desde meus tempos de graduação no curso de biologia da Universidade de São Paulo [USP], onde ingressei em 1974. Comecei a investigar a xeroderma pigmentosa no meu primeiro projeto de iniciação científica, três anos depois. Trata-se de uma doença genética, não contagiosa, que se caracteriza por extrema sensibilidade à radiação ultravioleta. Ou seja, quando acometidos, os indivíduos são muito suscetíveis a desenvolver câncer de pele. Mas só fui ter contato com pacientes 30 anos depois. Até 2004, estudava as células em laboratório. A interação com os pacientes modificou minha trajetória.
Em 2010 tomamos conhecimento da existência de uma comunidade em Faina, interior de Goiás, onde a frequência da doença é altíssima. Fizemos os cálculos e descobrimos que lá o diagnóstico se aplica a uma em cada 400 pessoas, enquanto as proporções mais comuns mundo afora vão de um indivíduo para 200 mil ou de um para 1 milhão. Em Faina há muitos casamentos consanguíneos, o que explica a elevada frequência da enfermidade. À época, em uma população de aproximadamente 7 mil pessoas identificamos 20 pacientes com xeroderma. Lá, portanto, o diagnóstico deixou de ser uma questão isolada, como estávamos acostumados até então, para se tornar uma realidade concentrada. Faina é o que chamamos de cluster genético, uma comunidade onde vivem vários pacientes com uma deficiência genética usualmente rara.
A partir daí, nossa equipe de biólogos construiu um relacionamento muito forte com aquela população e isso teve consequências para todos. Descobrimos, por exemplo, que a mutação era em um gene de replicação de DNA. A partir daí, passamos a trabalhar com replicação de DNA mais do que trabalhávamos antes. Um dos aspectos mais importantes é que esse campo nos deu a oportunidade de exercitar as relações humanas. Eu nunca tinha tido antes esse contato tão próximo, tão humano com, vamos dizer assim, um “objeto” de pesquisa.
A troca propiciada pela investigação científica revelou-se muito frutífera. Fazemos o sequenciamento de DNA para verificar se há mutação genética. Confirmada a mutação, temos o diagnóstico molecular da doença. Os pacientes, por sua vez, contribuem para a ampliação do conhecimento sobre a doença e a predisposição e ocorrência de alguns tipos de câncer. Nos ajudam a entender melhor o funcionamento do corpo humano e o processo de envelhecimento. Essas são algumas questões que vamos respondendo com o auxílio dos pacientes.
Algumas dessas questões carrego comigo desde o colegial, ou ensino médio, como chamam agora. Lembro de uma aula de biologia sobre DNA e herança genética, acho que eu devia ter uns 15 anos, que me marcou muito. Fiquei fascinado com aquilo e passei a ler tudo o que conseguia localizar sobre o assunto. Meu pai era comerciante e minha mãe dona de casa, tiveram pouco estudo formal, mas sempre incentivaram os filhos a ler e a estudar, tanto que nós – quatro irmãos – ingressamos na faculdade.
Entrei na graduação em biologia com 17 anos e fui desenvolvendo essa minha paixão por genética, e evolução, até descobrir a biologia molecular, que trata das interações entre DNA, RNA e proteínas, bem como a regulação dessas interações. Sempre quis fazer pesquisa científica. Meus pais e irmãos achavam que não era possível no Brasil, tinha de ser no exterior, porque aqui não havia condições. Pensei, vou tentar, se não der certo, vou embora. No terceiro ano da graduação, quando comecei a trabalhar com o professor Rogério Meneghini, vi que era possível. Ele desafiava os alunos com perguntas científicas e metodologias que se revelavam úteis para responder às questões que levantávamos em nossas pesquisas de iniciação científica.
Meneghini foi uma pessoa fundamental na minha carreira porque me deu muitos parâmetros de qualidade na pesquisa e, ao mesmo tempo, estimulou importantes reflexões sobre o fazer científico. Foi ele quem me incentivou, em 1978, a seguir direto para o doutorado. Eu já tinha muitos resultados de um projeto de pesquisa desenvolvido durante a graduação, em que identificamos como aconteciam o reparo de lesões provocadas por luz ultravioleta e a replicação dessas lesões em células de mamíferos. Minha tese de doutorado em bioquímica, orientada por ele, foi um desdobramento desse projeto. Identifiquei como as células de mamíferos realizam replicação de lesões no DNA. A tese foi defendida na USP, em 1982.
Por volta dos 26 anos, já com o título de doutor, fui convidado por Roberto Alcântara-Gomes para integrar o setor de biofísica do Instituto de Biologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [Uerj]. Fiquei lá por três anos. Foi uma experiência magnífica porque tive tranquilidade financeira e pude desenvolver outra grande paixão: dar aulas. Alguns alunos de graduação daquela época são meus amigos até hoje. Vi como era fazer pesquisa fora da USP e foi extremamente positiva essa vivência, inclusive pela constatação de que existiam dificuldades que não enfrentávamos aqui, envolvendo sobretudo o financiamento. Na Uerj, o laboratório ainda não estava estruturado para estudos com células de mamíferos e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro [Faperj] não tinha recursos para as pesquisas. Dependíamos do apoio do governo federal via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq.
Em 1985 surgiu a oportunidade de um estágio de pós-doutorado na França, no laboratório de Alain Sarasin, no Institut des Recherches Scientifiques sur le Cancer, em Villejuif, próximo a Paris. Foi outra experiência magnífica. É uma coisa inimaginável para nós, brasileiros, trabalhar com tanta estrutura. Além dos recursos materiais, havia a facilidade para a obtenção rápida de insumos e o apoio de técnicos que auxiliavam nas investigações, além da possibilidade de interlocução com os cientistas que já pesquisavam o mesmo tema. Minha temporada fora serviu também para eu ter certeza de que queria construir minha carreira científica no Brasil, fazer minhas pesquisas aqui e, sobretudo, ensinar. Três anos depois, sendo dois com bolsa concedida pelo CNPq e um com bolsa da França, decidi voltar para a USP. Não apenas porque foi na USP que tudo começou para mim, mas principalmente pelo que a FAPESP representava – e representa – para o fomento à pesquisa. Havia também a questão da autonomia. Não precisava adequar minha pesquisa à determinada área de interesse por causa da fonte de recursos.
Desde então sigo me aprofundando em genética e estudando sistemas de reparo de DNA, ou seja, investigando os mecanismos de proteção do genoma contra agressões físicas e químicas do ambiente celular. Esses sistemas de reparo de DNA estão relacionados à gênese de tumores e ao envelhecimento, por exemplo. Para entender como funcionam as coisas, é preciso mergulhar na pesquisa, que exige envolvimento integral. Não é algo que dá para fazer parcialmente.
Costumo dizer que não tenho criatividade nenhuma, trabalho hoje com as mesmas células que trabalhava na graduação. É uma brincadeira, porque sempre me surpreendo com as descobertas moleculares. Uma célula nunca é igual à outra. A molécula do DNA segue sendo uma das minhas grandes paixões, mas hoje também ando muito interessado pela molécula do RNA. O DNA guarda as informações genéticas. Já o RNA responde pela síntese de proteínas das células do corpo. Trabalho com pesquisa há mais de 40 anos e não deixo de me surpreender com os mistérios da vida. Quem será capaz de dizer por quais caminhos a pesquisa vai nos levar?
Fonte: Pesquisa Fapesp