10/10/22
Pairando próximo à superfície da água, o drone mais parece uma mosquinha curiosa, zumbindo sobre a cabeça da baleia. Para os pesquisadores que assistem à cena da embarcação, é um momento de tensão e animação. Quem pilota a aeronave é o biólogo Fabio Fontes, do Instituto Baleia Jubarte. Ele usa as imagens da câmera para posicionar o drone diretamente sobre o orifício respiratório do animal, bem na “linha de tiro” do borrifo molhado que está por vir. Em condições normais, o contato com a água seria algo a ser evitado; mas aqui, não: quanto mais molhado o drone voltar para a embarcação, melhor.
“Segura, segura”, orienta a pesquisadora Samira Costa da Silva, doutoranda da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. Logo abaixo do drone estão uma jubarte adulta fêmea e seu filhote, boiando tranquilamente nas águas de tom turquesa do Banco dos Abrolhos, no sul da Bahia. “Agora foi”, comemora ela, quando um borrifo exalado pela baleia mãe atinge a aeronave. Fontes, então, envia o comando para que o drone retorne à embarcação.
A máquina voadora pousa nas mãos da pesquisadora, que veste luvas e máscara de proteção azuis — não para se proteger da covid-19, mas para evitar a contaminação das amostras com bactérias da sua própria respiração. O drone tem quatro placas de plástico transparente acopladas a ele — duas em cima e duas embaixo —, e todas elas voltam salpicadas por gotículas de borrifo. É dentro dessas gotinhas, explica Samira, que está o seu objeto de pesquisa: amostras de bactérias e outros microrganismos que povoam naturalmente o trato respiratório das baleias. Em última instância, ela quer saber se essas bactérias possuem genes de resistência a antibióticos, o que seria um indicador preocupante de que a contaminação do ambiente por esses medicamentos está afetando a fauna marinha.
Dois anos atrás, um estudo pioneiro liderado pelo professor José Luiz Catão Dias e sua aluna de doutorado Ana Carolina Ewbank, também da FMVZ, encontrou diversos genes de resistência a antibióticos em bactérias do trato gastrointestinal de aves marinhas no arquipélago de Fernando de Noronha e no Atol da Rocas — ambientes insulares, localizados a centenas de quilômetros da costa do Rio Grande do Norte. Foi então que Samira teve a ideia de fazer a mesma investigação em baleias, só que com uma dificuldade a mais: ela também precisava trabalhar com animais vivos, na natureza, mas baleias de 45 toneladas não podem ser capturadas com redes e imobilizadas como se fez com aves marinhas e outras bichos menores. Então, como coletar as amostras?
Um outro trabalho coordenado por Catão Dias e a então doutoranda Kátia Groch, também publicado em 2020, detectou a presença de uma variante de Morbillivirus no borrifo de baleias jubarte em Abrolhos. (Morbillivirus é o vírus que causa sarampo em seres humanos. Nos cetáceos — grupo de mamíferos marinhos que inclui as baleias e os golfinhos — ele também é patogênico e altamente infeccioso, podendo causar surtos com altas taxas de mortalidade.) Nesse caso, as amostras de borrifo haviam sido coletadas anos antes, usando placas de acrílico presas a uma vara de quatro metros, o que exigia que os pesquisadores chegassem bem perto das baleias para coletar.
O estudo comprovou que os borrifos continham amostras do microbiota respiratória das baleias e que era possível extrair informações biológicas e genéticas dessas amostras. Exatamente o que Samira precisava para a sua nova pesquisa. Inspirada por trabalhos recentes que estavam sendo feitos em outros países, porém, ela optou por trabalhar com drones, para reduzir a necessidade (e os riscos) de ter que chegar tão perto das baleias. O projeto faz parte do doutorado de Samira, orientado pela professora Lara Keid, do Departamento de Medicina Veterinária da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP, em Pirassununga.
As primeiras coletas foram feitas ainda em 2019, e de lá para cá já somam 27 amostras. A reportagem do Jornal da USP acompanhou o trabalho de campo do projeto neste ano, no início de setembro, que quase não aconteceu por questões climáticas. Em dois dias, foram coletadas seis amostras — cinco de jubartes e uma de baleia franca.
“São amostras que valem ouro. É informação que vem de dentro do animal, do jeito que ele está na natureza”, comemora Samira. Muito mais fácil seria coletar amostras de tecido de baleias encalhadas, mas nesse caso haveria um viés muito grande nas análises, já que a maioria das baleias que encalham já está doente ou morta, às vezes em estado avançado de putrefação. Sendo assim, seria impossível concluir que as bactérias e vírus coletadas nesses animais fazem parte da microbiota de uma baleia saúdavel na natureza, ou não.
“O bicho morto não te dá uma visão clara da saúde da população”, explica Samira. Os genes de resistência a antibióticos são o alvo principal desta pesquisa, mas as portas que se abrem para fazer diferentes análises e investigar outras questões com base na coleta de borrifos são muito mais amplas. “A possibilidade de acessar o ar expirado desses animais é maravilhoso”, afirma Catão, que dirige o Laboratório de Patologia Comparada de Animais Silvestres e orientou o mestrado de Samira na FMVZ. Além de bactérias e vírus, o borrifo carrega células e fragmentos de células desprendidas do trato respiratório do animal, que também podem servir como fonte de material genético para análise. “Claro que não é nenhuma panaceia, mas a quantidade de informações que a gente pode obter de uma forma não invasiva é sensacional.” Fora isso, diz ele, a única maneira de obter dados biológicos de baleias vivas na natureza é por meio de tiros de balestra, em que os pesquisadores utilizam flechas com pontas adaptadas para coletar pequenas amostras de pele dos animais.
Em última instância, Samira espera que as informações obtidas dos borrifos possam ajudar no monitoramento da saúde das baleias — em escala populacional — e dos ecossistemas marinhos que elas habitam. O Banco dos Abrolhos é o principal refúgio de baleias jubartes do Atlântico Sul: milhares migram temporariamente da Antártida para lá todos os anos, entre julho e novembro, para parir, copular e amamentar seus filhotes nas águas calmas e quentinhas da região. Mas os números variam ano a ano, e os cientistas nem sempre sabem explicar porquê. Em 2021, houve um recorde de encalhes de baleias na costa brasileira, segundo o Instituto Baleia Jubarte. Será que doenças causadas por patógenos poderiam estar envolvidas? É uma questão que o monitoramento por borrifos, talvez, possa ajudar a responder. “É uma forma de pegar a ciência e aplicá-la diretamente em conservação”, pontua Samira.
Com base nas pesquisas anteriores, os pesquisadores já sabem, por exemplo, que o Morbillivirus está amplamente disseminado entre populações de cetáceos no Brasil. “É algo que precisa ser acompanhado de perto, para que possamos responder rapidamente, caso algo de estranho comece a acontecer”, afirma Catão. Entre 2017 e 2018, quase 300 botos-cinzas morreram infectados pelo vírus no Rio de Janeiro. “É o vírus que mais mata mamíferos marinhos”, alerta o pesquisador.
A primeira pergunta que Samira vai tentar responder com essas novas coletas, porém, refere-se à possível presença de genes de resistência a antibióticos na microbiota respiratória das baleias. As análises genômicas das amostras serão feitas na Espanha, em novembro, utilizando uma técnica desenvolvida pelo pesquisador Fernando Esperón, da Universidade Europeia em Madri, que permite detectar especificamente esses genes de resistência. Entre eles, o famigerado mcr-1, gene de resistência ao antibiótico colistina, que representa atualmente a última linha de defesa farmacológica contra a infecção por bactérias multirresistentes, tanto na medicina humana quanto veterinária. (Esse foi um dos genes encontrados na microbiota intestinal das aves marinhas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas.)
A primeira pergunta que Samira vai tentar responder com essas novas coletas, porém, refere-se à possível presença de genes de resistência a antibióticos na microbiota respiratória das baleias. As análises genômicas das amostras serão feitas na Espanha, em novembro, utilizando uma técnica desenvolvida pelo pesquisador Fernando Esperón, da Universidade Europeia em Madri, que permite detectar especificamente esses genes de resistência. Entre eles, o famigerado mcr-1, gene de resistência ao antibiótico colistina, que representa atualmente a última linha de defesa farmacológica contra a infecção por bactérias multirresistentes, tanto na medicina humana quanto veterinária. (Esse foi um dos genes encontrados na microbiota intestinal das aves marinhas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas.)
A presença desses genes no borrifo das jubartes, caso confirmada, não significará necessariamente uma ameaça para as próprias baleias — já que elas não tomam antibióticos —, mas será um péssimo indicador de que o ambiente marinho está contaminado pelo uso excessivo desses medicamentos, e que essa contaminação está afetando o microbioma marinho, com consequências imprevisíveis para o futuro. “Se a gente achar bactérias resistentes a antibióticos no sistema respiratório de baleias, é porque as baleias pegaram essas bactérias do ambiente. E quem colocou essas bactérias no ambiente? Provavelmente a gente”, afirma Samira. O gene mcr-1 se dissemina facilmente entre bactérias por meio de um processo biológico conhecido como transferência horizontal de genes.
A chamada “poluição farmacêutica” é uma das maiores preocupações ambientais do mundo moderno, com consequências potencialmente nocivas tanto para os seres humanos quanto a vida selvagem. Somente em 2020, cerca de 4,5 trilhões de doses de medicamentos foram usadas mundialmente, “e o consumo continua a crescer”, alerta um grupo de pesquisadores europeus, em um artigo publicado na revista Science, em julho deste ano. Uma grande parte dessas drogas, usadas em grande escala na medicina humana e veterinária (por exemplo, para o tratamento profilático ou terapêutico de rebanhos), acaba desaguando em rios e mares, depois de ser descartada pelas pessoas, seja por meio de resíduos sólidos ou pelo esgoto (urina e fezes).
“Como resultado, os produtos farmacêuticos são encontrados em muitos ambientes diferentes, em todos os continentes, onde invocam impactos ecológicos potencialmente de longo alcance pela própria razão de serem eficazes como medicamentos: são moléculas projetadas para desencadear mudanças biológicas, mesmo em concentrações muito baixas. Pesquisas mostraram que animais aquáticos selvagens podem acumular fármacos em doses equivalentes às administradas em humanos, o que pode resultar em concentrações plasmáticas superiores à concentração terapêutica humana”, escrevem os pesquisadores na Science. Segundo eles, isso pode levar a uma série de alterações, tanto na saúde quanto no comportamento desses animais, assim como no funcionamento dos ecossistemas.
A possível presença de genes de resistência a antibióticos no borrifo de baleias, portanto, é um alerta para nós. “Ver a saúde das baleias é ver também como está a saúde do meio. E a gente se alimenta desse meio, então é uma questão de saúde pública também”, conclui Samira.
Uma vez estabelecidos os procedimentos de coleta, o próximo passo é padronizar os protocolos de análise das amostras em laboratório para, quem sabe, usar essas coletas de borrifo como uma forma de monitorar a presença e dispersão da poluição farmacêutica no ambiente marinho. “É uma grande preocupação da atualidade”, diz a professora Keid, que orienta o doutorado de Samira.
Catão e Samira destacam que nenhuma dessas pesquisas seria possível sem a colaboração da academia com as organizações governamentais e não-governamentais que trabalham com a conservação dessas espécies na natureza. É uma relação benéfica para todos. “Sem ciência não existe conservação”, diz o presidente do Instituto Baleia Jubarte (IBJ), Eduardo Camargo, que fez mestrado em engenharia sanitária e especialização em gestão ambiental na Escola Politécnica (Poli) da USP. O instituto recebe todos os anos dezenas de estagiários e estudantes de pós-graduação, que ganham experiência de campo e produzem pesquisas indispensáveis para o monitoramento e conservação das baleias. Samira e Groch são exemplos disso — ambas estagiaram no IBJ e depois utilizaram essa experiência para desenvolver seus projetos de pesquisa na universidade, em parceria com o instituto. “Seria impossível para nós ter uma equipe própria tão qualificada e multidisciplinar assim; então essas parcerias são superestratégicas”, afirma Camargo. O instituto oferece apoio logístico, expertise e presença constante no campo; as universidades trazem recursos humanos e conhecimento. “Precisamos de profissionais cada vez mais especializados, para subsidiar políticas públicas de conservação com informações de ponta”, diz Camargo.
Quase dizimadas no passado pela caça comercial, as jubartes são hoje um grande exemplo de sucesso na proteção e recuperação de espécies ameaçadas de extinção. A população do Atlântico Sul, que circula entre a Antártida e o Brasil, chegou a ser reduzida a cerca de 500 baleias por volta de 1960, quando a Comissão Internacional de Baleias decretou uma moratória global à caça desses animais. Hoje, graças a um grande esforço de conservação — envolvendo cientistas, ambientalistas e o poder público — essa população cresceu para cerca de 20 mil jubartes. A espécie foi retirada da lista de ameaçadas de extinção no Brasil em 2014.